♭0. Allegro con brio: contra a terraplenagem das ideias
Um paradoxo do nosso tempo: em meio à abundância de informação, somos cada vez menos capazes de exercer o pensamento crítico e sustentar a atenção. Enquanto isso, o elogio à ignorância ganha espaço
A maldição da ignorância
“Na política e na vida, a ignorância não é uma virtude” — Barack Obama.
Em 2016, quando Obama falou essa frase em um discurso no Rutgers College, Trump ainda era uma sombra alaranjada conhecida por ter falido alguns cassinos.
A fala contrasta com aquele conhecido aforismo inglês — “ignorance is bliss”, que aqui traduzimos como “a ignorância é uma bênção”. O verso original, do poeta Thomas Gray (1742), sugeria que o conhecimento traria sofrimento: “thought would destroy their paradise” [o pensamento vai destruir o seu paraíso], escreveu ao observar estudantes do Eton College.
Quase três séculos depois, números da OCDE em 31 países mostram que muitos seguiram o conselho de Gray ao pé da letra, já que a proficiência em leitura melhorou em apenas 2 países na última década, permaneceu estável em 14 e caiu em 11.
No Brasil, a gente sabe, o buraco é mais embaixo. No Pisa de 2022, metade dos jovens brasileiros não conseguiu identificar a ideia principal em textos de extensão moderada (escrevi sobre isso para a Folha no final de 2023); na avaliação sobre “pensamento criativo”, quase metade dos estudantes teve dificuldade com tarefas básicas, como desenvolver uma história. Estamos em 8o. lugar entre os 11 países da América Latina avaliados, e a pesquisa Panorama do Consumo de Livros mostrou que 84% da população brasileira não comprou nenhum livro nos últimos 12 meses.
Parte da culpa pode ser da tecnologia, como sugere Sarah O’Connor no Financial Times, que mudou a forma como consumimos informação, trocando textos longos e complexos, como livros e jornais, por posts fugazes e vídeos cada vez mais curtos. Esse cenário reflete um paradoxo do nosso tempo, como comentou Obama naquele mesmo discurso: “a enxurrada de informações não nos tornou mais criteriosos em relação à verdade. De certa forma, apenas nos tornou mais confiantes em nossa ignorância”.
Sintomaticamente, Trump, hoje mais empoderado do que nunca, diz governar com base apenas no próprio “bom senso”.
Retomada
Depois de quase um ano, retomo este canal para refletir sobre a enrascada em que a gente se meteu — sem com isso endeusar ou demonizar as tecnologias.
Entre diagnósticos alarmistas e soluções apressadas, eu me pergunto que formas de conhecimento e descoberta ainda são possíveis — e necessárias — em tempos de tanta informação (e tão pouca compreensão).
Em 2007, fui assistente em um workshop da National Geographic no Queens, Nova York, onde o fotojornalista Ed Kashi (vale a pena conhecer o trabalho dele) orientava jovens imigrantes nas suas primeiras experiências fotográficas — o Queens é uma das regiões mais etnicamente diversas do mundo.
Lembrei disso por causa de uma frase de Kashi que me marcou (e que está no começo do vídeo abaixo):
uma das coisas mágicas da fotografia é que ela pode ser um veículo de descoberta. De autodescoberta, mas, também, se você sair pelo mundo com uma câmera, um coração aberto e uma mente aberta, ela se torna um veículo para descobrir o mundo em que você vive.
O que Kashi nos oferecia ia além do conhecimento técnico ou estético sobre a fotografia: aquele era, em suma, um exercício de atenção.
Eu e os adolescentes do Queens, com câmeras básicas e orientações elementares, descobrimos algo que hoje parece cada vez mais escasso: o prazer da atenção prolongada, da observação paciente, da busca por sentido (foi essa experiência que me levou ao fotojornalismo).
O leilão da atenção e a recusa ao pensamento
No podcast Radio Atlantic, Chris Hayes, autor de The Sirens' Call: How Attention Became the World's Most Endangered Resource [O canto das sirenes: como a atenção se tornou o recurso mais ameaçado do mundo], analisa como nossa capacidade de concentração — um recurso finito e valioso — é disputada por forças muito poderosas.
Hayes traça um paralelo com a teoria marxista: assim como o trabalhador da era industrial foi alienado do produto do seu trabalho, nós somos hoje alienados da própria atenção, extraída e comercializada muitas vezes sem a nossa plena consciência. O processo, diz Hayes, opera num nível quase biológico, com alertas frequentes que estimulam reflexos involuntários — como sirenes demandando nossa atenção mais instintiva.
Outro problema é que, nesse dilúvio informacional, como observa no FT o diretor de educação da OCDE, Andreas Schleicher, nós tendemos a ler apenas o que confirma as nossas visões, evitando perspectivas diversas.
E esse fechamento ao diálogo não poupa nem mesmo os espaços originalmente dedicados à reflexão. No podcast Sem precedentes, do JOTA, Felipe Recondo e André Rufino mostram como a polarização política afeta as salas de aula de Direito Constitucional, com alunos chegando com ideias cristalizadas e resistentes a qualquer debate (os vaivéns do STF e os privilégios do Judiciário ajudam a piorar esse cenário).
Em artigo no Estadão, a jurista Clarita Costa Maia retoma uma palestra de Niall Ferguson sobre como até as universidades podem se tornar incubadoras do extremismo. Ferguson cita “A traição dos intelectuais”, onde Julien Benda, em 1927, antecipava um fato perturbador: as universidades alemãs foram as primeiras plataformas sociais do nazismo. Maia relaciona esse exemplo histórico a um episódio recente, quando dois acadêmicos judeus de esquerda — Michel Gherman e Matheus Alexandre de Araújo —, críticos das políticas de Israel, foram interrompidos por estudantes da UFC, com a atitude registrada e celebrada pela claque digital.
Há poucos dias, a psicanalista Maria Rita Kehl foi vítima de um cancelamento que infelizmente comprova a crítica que fazia ao narcisismo de certa militância identitária. Como resultado, a sua extensa trajetória foi reduzida ao fato de Kehl ser neta de um eugenista, como notou Rodrigo Toniol na Folha.
Ou seja: tanto o anti-intelectualismo quanto o sectarismo acadêmico são, em resumo, formas de recusa ao verdadeiro trabalho do pensamento. Se um rejeita a complexidade em nome de certezas simplistas, o outro transforma o conhecimento em dogma e em instrumento de poder. O resultado de ambas, no fim, é o mesmo (e nada benéfico): a interdição do debate.
Allegro con brio, enfim
Volto à oficina de fotografia no Queens. O que eu e aqueles jovens aprendemos com Ed Kashi 18 anos atrás não tem a ver somente com fotografia, mas com uma forma de estar no mundo: atentos, curiosos, abertos ao imprevisto e à incerteza. É nesse espírito que retomo essa newsletter, agora como Allegro con brio.
O título vem da partitura da 5a. Sinfonia de Beethoven, mas também se inspira no professor Clóvis de Barros Filho, com quem venho aprendendo desde a graduação. Neste vídeo, ele define o “brio” intelectual como a determinação de compreender aquilo que, à primeira vista, parece incompreensível. Textos difíceis, ele diz, são oportunidades, não fardos (mas depois do doutorado um descanso vai cair bem).
Juntando Clóvis com Kashi e Obama, o que surge para mim é um convite ao combate àquilo que chamo de “terraplenagem das ideias” (de qualquer lado do espectro político): um chamado ao resgate de um modo de pensar que abrace a complexidade, a diversidade, a incerteza e, principalmente, a abertura ao diálogo.
Em tempos de excesso de opiniões e certezas lacradoras, prefiro optar pelo caminho sinuoso do ensaio — essa generosa arte em processo que expõe as próprias ferramentas; um exercício de descoberta que se faz e se mostra na escrita, buscando sempre resistir à simplificação; um exercício do pensamento movido por brio e curiosidade.
Referências
Anti-Intellectualism Is Killing America? (David Niose, Psychology Today)
Twilight of the Books (Caleb Crain, The New Yorker)
Are we becoming a post-literate society? (Sarah O’Connor, Financial Times)
Aprender a ler, aprender a escrever, aprender-a-viver (Paulo Fehlauer, Folha de S. Paulo)
The War for Our Attention (Chris Hayes e Hanna Rosin, Radio Atlantic)
A crise de legitimidade do STF foi bater dentro da sala de aula (Felipe Recondo e André Rufino, Sem precedentes)
O despudor do microfascismo da esquerda (Clarita Costa Maia, Estadão)
O cancelamento de Maria Rita Kehl e as armadilhas do identitarismo (Rodrigo Toniol, Folha de S. Paulo)
Livros no Brasil: ricos reclamam do preço e classe C é a que mais compra (
, Página Cinco)The Anti-Social Century (Derek Thompson, The Atlantic)
'Sem luz' é dizer que o sentido de 'aluno' é esse (Sérgio Rodrigues, Folha)
Se você chegou agora
Sou Paulo Fehlauer, criado no oeste do Paraná e habitante de São Paulo. Entre outros estudos, estou terminando um doutorado em Teoria Literária e acabo de fazer uma pós em Jornalismo de Dados. Sou também programador, fotógrafo, produtor audiovisual e artista visual — talvez você tenha visto algum trabalho do Coletivo Garapa no Masp, MAM-SP, Sesc ou IMS.
Meu primeiro romance, Extremo Oeste, venceu o Prêmio Cepe em 2021, como Melhor romance, e o Jabuti em 2023, na categoria Escritor estreante. Veja o que diz o Leandro Karnal:
Falando nisso, essa semana estarei no Podletras. Se você ler a news antes, ative a notificação para ver ao vivo; se viu depois, assista à gravação:
Pesquisa
Ei, você! Estou maturando alguns projetos para 2025 e agradeço de coração se você responder essa pesquisa:
Álbum
Nesta seção eu apresento algumas fotos vasculhadas no meu acervo. Hoje aproveito a menção ao Queens para trazer alguns registros daquela experiência (e dos primeiros passos que dei no fotojornalismo).









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Paulo, que belo texto.